O sucesso dos livros assinados por Gillian Flynn fomentaram o tão influente mercado literário da língua inglesa nos últimos cinco anos, ainda mais quando Hollywood é cada vez mais criticada pela ausência de protagonistas femininas (isso pra não dizer da falta de diversidade). Ainda que ótimas personagens surgiram nesse meio tempo, existe uma certa contestação de que as mesmas são criadas por roteiristas/autores homens, algo que pode gerar divergências no processo de transcrição da psique feminina para as páginas ou telas. Encontrando potencial no suspense best-seller de Paula Hawkins, mas deixando de lado a importância de sua representatividade, a adaptação de “A Garota no Trem” não consegue almejar a mesma qualidade de “Garota Exemplar“.
De fato, não faltam personagens mulheres no filme dirigido por Tate Taylor (“Histórias Cruzadas“) e com roteiro de Erin Cressida Wilson, que vai e volta na linha do tempo para contar as histórias de três mulheres distintas (até então) nos arredores de Nova York com mistério e mudanças de posicionamento de sobra. Num trem que parte para Manhattan está Rachel (Emily Blunt), que tomou o hábito de apreciar a vista da janela e fabular o que se passa nas vidas da vizinhança da Beckett Road, concentrando sua atenção no (aparentemente) belo casal vivido por Megan e Scott (Hayley Bennett e Luke Evans, respectivamente). Tudo porque Rachel sempre desejou ter uma família ideal e amada, mas seu relacionamento anterior levou a uma vida tão amarga quanto o gosto da vodca que passou a beber compulsivamente, fazendo-a ligar diversas vezes para o celular do ex-marido (vivido por Justin Theroux) e até mesmo perturbar a vida do mesmo na casa onde hoje mora com Anna (Rebecca Ferguson) e sua bebê.
Coincidência ou não, a residência da família Watson localiza-se na mesma rua da jovem esposa que Rachel tanto observa e valoriza (ou seria inveja?), mas, em uma de suas vontades súbitas de visitar sua antiga casa em vergonhosas tentativas de reconciliação, a Garota no Trem é encontrada em uma circunstância de assassinato não muito longe dali e, com seu perfil nada agradável (além do álcool, há tempos está desempregada), tudo inclina para que Rachel seja a responsável pelo crime. A não ser que os demais pontos de vista permitam uma revisão dos fatos, sondando sempre os instintos (reprimidos) do sexo feminino.
Da sua narrativa fragmentada às suas personagens dúbias até o último segundo, não haveria motivos para discordar que aqui temos um bom filme culto, mas é em sua pompa por inteligência que “A Garota no Trem” sai dos trilhos desperdiçando seus bons atributos inseridos no texto em troca da sua progressão à base da ansiedade. Tome como exemplo a fraca e dispersa investigação endossada pela delegada de Allison Janney (novamente ofuscada) repleta de acusações e carente de evidências, presumindo que a prova do crime está escondida entre os “apagões” da bêbada. Na bem verdade, o roteiro se esquece que tem em mãos um vídeo com Rachel manifestando sua vontade de assassinar Megan, um artifício narrativo que, mesmo tendo alguns planos de detalhe expondo seu conteúdo, é deixado de lado logo quando poderia fornecer conflitos mais interessantes para solucionar.
Desperdício também é o que ronda o elenco do filme, onde apenas Emily Blunt se destaca mais pela empatia gerada devido a situação da sua personagem do que sua performance balbuciante e decadente. Ainda que Ferguson e Bennett demonstrem uma frieza questionável, longe de serem apenas “belas, recatadas e do lar”, o elenco masculino entrega interpretações cafajestes que, se por um lado justificam a mudança de perspectiva, logo caem no estereótipo do machismo opressor, o que só piora quando o psicólogo vivido pelo galã feio Édgar Ramírez apela para seu idioma nativo em uma tentativa de sedução em plena sessão de terapia, deixando um crescente sentimento de vergonha alheia.
Ao convocar a diretora de fotografia Charlotte Bruus Christensen para criar a mesma atmosfera lúgubre vista no ótimo “A Caça“, relegada a fazer planos fechados dignos de um conteúdo para televisão, era para “A Garota no Trem” ser um memorável suspense, mas Tate Taylor vai na contra-mão quando parece mais dedicado replicar a malícia de gosto duvidoso de “Cinquenta Tons de Cinza” do que tentar se parear a outros mestres do suspense, logo quando detinha a chance de criar um “Janela Indiscreta” para tempos menos inocentes.
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