A abertura do 14º Olhar de Cinema – Festival Internacional de Curitiba aconteceu ontem (11), em uma noite gelada, com temperaturas que faziam os casacos parecerem insuficientes, mas que não impediram que a icônica Ópera de Arame ficasse lotada. A casa cheia e a expectativa no ar deixavam claro que o público estava sedento por cinema.

E nada mais simbólico para abrir um dos principais festivais de cinema do Brasil do que uma obra instigante e visualmente deslumbrante como “Cloud: Nuvem de Vingança“, o mais novo filme do consagrado diretor japonês Kiyoshi Kurosawa, que mandou uma mensagem em video apresentada antes da exibição do longa. Conhecido por mergulhar no suspense psicológico e no horror do cotidiano, Kurosawa entrega aqui uma experiência cinematográfica que começa como uma crítica social mordaz e termina em um delírio de paranoia e violência.

Uma atmosfera de tensão e beleza

O filme acompanha Ryōsuke Yoshii, um homem que abandona seu trabalho convencional para lucrar com vendas online sob o pseudônimo “Ratel”. Ele constrói um pequeno império digital nas sombras, até que sua identidade é exposta e seu mundo desmorona em uma espiral de vingança. A trama se desenrola em um Japão frio, concreto, onde o individualismo e o consumo moldam comportamentos extremos. Kurosawa sabe criar tensão como poucos, e em “Cloud” ele constrói uma atmosfera que prende desde o primeiro minuto. A estética é cuidadosamente pensada, com uma fotografia que valoriza os espaços vazios, a luz artificial opressora e as nuances de isolamento urbano. O diretor de arte brinca com os espaços digitais e físicos, tornando o ambiente um personagem crucial na degradação emocional do protagonista.

Visualmente, é um deleite. A direção de arte e o uso das cores reforçam o estado mental de Ryōsuke, que parece cada vez mais aprisionado em uma nuvem não apenas de dados, mas de consequências imprevisíveis. A performance de Masaki Suda é outro ponto alto: contida, marcada por uma frieza crescente que culmina em um colapso.

Quando o roteiro tropeça no próprio abismo

Apesar da potência estética e temática, o roteiro de “Cloud” apresenta seus tropeços. A proposta de explorar os perigos do anonimato online, do empreendedorismo tóxico e da alienação digital é promissora, mas em certo ponto a narrativa se rende a viradas abruptas que rompem a lógica interna construída até então. O realismo sujo da primeira metade dá lugar a um clima quase surreal, com escolhas narrativas que flertam com o exagero e o fantástico, o que pode dividir opiniões. O terceiro ato, especialmente, parece pertencente a outro filme, mais próximo de um pesadelo distorcido do que de um comentário social coerente. Embora Kurosawa seja mestre em lidar com o desconforto e a ambiguidade, aqui ele arrisca demais, e nem sempre o salto funciona.

Ainda assim, a experiência é válida. O público que lotou a Ópera de Arame permaneceu atento até os créditos finais, com reações mistas, e aplausos no final da exibição. A sessão de abertura cumpriu sua função: provocou, dividiu, e deu o tom do que o Olhar de Cinema promete para os próximos dias — um espaço de reflexão e descoberta, onde o cinema não se acomoda, mas cutuca, questiona e desestabiliza.

Um olhar sobre a nuvem — e o abismo

Cloud: Nuvem de Vingança” é um filme que mira alto, com ambição estética e crítica social afiada, mas que por vezes se perde ao tentar abarcar demais. Kurosawa entrega uma obra de contrastes: bela e brutal, direta e simbólica, relevante e, por vezes, desconexa. Ainda assim, é um acerto que vale ser visto, especialmente quando apresentado em um palco tão simbólico quanto o da abertura do Olhar de Cinema. A nuvem que paira sobre o filme não é só tecnológica; é existencial.

Nota CineOrna: ⭐⭐☆☆☆ (2/5)
Indicado para: Ideal para quem aprecia cinema autoral japonês, com forte apelo visual e temáticas sociais inquietantes, especialmente espectadores interessados em narrativas que exploram os impactos da tecnologia, do isolamento urbano e da moralidade líquida da era digital.