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Quando o ainda indômito meio-oeste dos Estados Unidos resistia à agressiva investida da civilização do homem branco no Século XIX, o embate entre colonizado e colonizador era longe de ser maniqueísta. Enquanto americanos e nativos se matavam entre tiros e flechas, pilhando o que achassem por direito (lê-se aí carnes, peles, utensílios, ouro e até mulheres), além das tribos praticantes do escambo com os americanos e franceses, no meio dessa sociedade relutantemente miscigenada havia aqueles que buscavam no misticismo “selvagem” uma força a mais para viver, relegando o mal do progresso. Em “O Regresso“, o diretor Alejandro G. Iñiárritu exulta-se numa obra que pesa mais em sua contemplatividade e em seu pretenso ritualismo.

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Décadas antes de a Guerra da Secessão assolar boa parte dos Estados Unidos, mais precisamente em 1823, a Companhia de Peles Montanhas Rochosas sofria diversas baixas de seu contingente de homens depois de um ataque dos índios Arikaras nas terras pra lá do Rio Missouri, perdendo também boa parte de sua mercadoria de peles animais para os nativos. Acossados por seus perseguidores, a única esperança dos homens cai nos ombros de Hugh Glass (Leonardo DiCaprio) que, acompanhado do seu filho mestiço Hawk (Forrest Goodluck), conhece aquelas terras como ninguém, até que o ataque de um urso-cinzento deixa Glass praticamente moribundo. Ao passo em que o Capitão Andrew Henry (Domhnall Gleeson, cada vez mais notável) sente a necessidade de voltar para o forte, ele delega que três de seus homens permaneçam com Glass a troco de uma recompensa, afinal, Henry não quer perder seu caçador mais experiente. Quando Hawk e o jovem Bridger (Will Poulter, dedicado) se voluntariam para ficar com o homem ferido até o seu último suspiro, o instável John Fitzgerald (Tom Hardy), que não tem boas lembranças dos índios, confabula para conseguir aquele dinheiro mais rápido do que o esperado e isso implica também em adiantar o sofrimento final de Glass. No entanto, essas seriam ainda as primeiras dores para o homem que testemunhou por duas vezes a morte de sua família, cicatrizes que apenas intensificam seu ímpeto por vingança.

Inspirado parcialmente no livro homônimo de Michael Punke, Iñárritu e Mark L. Smith compõem um roteiro com um mínimo de diálogos e, assim como aconteceu com “Mad Max: Estrada da Fúria“, é um equívoco dizer que “O Regresso” não possui “história” só pelo fato de haver uma preferência ao imagético e às ações físicas, muito embora o filme de George Miller tenha desenvolvido seus personagens com muito mais afinco e interesse do que as figuras “reais” que o diretor mexicano tem em suas mãos. Muito nas entrelinhas, seu contexto histórico é evidente enquanto abafa (ou quase recusa) a causa indígena, apontando uma trama secundária que vem ocasionalmente durante a trama, um velho índio Powaqa que persegue os brancos em busca de sua filha raptada. De início, tal linha narrativa parece excessiva, até destoada, mas logo os caminhos de Glass vão de encontro a essa urgência de um pai que ainda quer manter sua família e também leva a vingança a sério. É uma pena que Iñárritu não enxergue (ou não quer…) seu filme como um western, por mais que haja conteúdo de sobra para torná-lo um épico revisionista.

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É na poesia de seus planos, então, que reside a força de “O Regresso“. Enquadrando a natureza em todo o seu esplendor indomável, o valor de produção do filme é surpreendente, justificando os seus longos nove meses de filmagens sob (e sobre) intensa neve. Ao passo em que Emmanuel Lubezki já tinha surpreendido com “Gravidade e “Birdman”, em suas respectivas experiências com a simulação do espaço e a captura das nuances de luzes internas e externas da agitada Nova York, o diretor de fotografia e mestre dos planos-sequências não precisava provar nada a ninguém após sua dupla condecoração no Oscar, mas é aí que Lubezki regressa e faz um trabalho que supera as suas fotografias nos filmes do diretor Terrence Malick. Filmado completamente com luzes naturais, as composições de Iñárritu e Lubezki são revigorantes aulas de direção e cinematografia, sobretudo com os seus movimentos de câmera precisos, fluindo entre as ações bem pontuadas dos personagens nos longos planos que dificilmente nos desinteressam. São 156 minutos que nos fazem instigar, temer e contemplar tamanha imensidão do projeto, por mais que Iñárritu beba da fonte de mestres como John Ford, Akira Kurosawa, Andrei Tarkovsky e até mesmo do já citado Malick, com suas passagens transcendentais (embora meramente plásticas aqui) sob a mínima, mas potente, trilha de Ryuichi Sakamoto e Alva Noto.

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Não há dúvidas também de que a atuação de Leonardo DiCaprio seja exímia e merecedora de seus prêmios. A projeção inteira expõe os quase infinitos sofrimentos personagem que o personagem passa em seu curso, parecendo ciente de que seus ferimentos são nada mais que punições por ter deixado sua família perecer, assim como sacrifícios para torná-lo ainda mais infalível em sua busca por vingança. Ao vestir a pele do urso que o atacou (cena esta impecável por sua execução e ferocidade), é como se Glass pertencesse a um daqueles povos antigos que executava seu inimigo e o consumia para adquirir sua força. Já diria o didato, o que não nos mata, nos torna mais fortes. Ainda que não seja seu melhor trabalhando, carregando alguns vícios de papéis anteriores, Tom Hardy faz com que Fitzgerald imponha medo até mesmo em seus superiores, mas um sentimento alimentado por sua covardia. Se a comentada cena do urso chocava por ser brutal logo no início, o confronto final entre os dois homens é ainda mais sufocante, acirrado, com destaque para a tática sagaz de Glass que, novamente, recorre à natureza e seus fantasmas do passado.Apesar de os antigos costumes ritualísticos serem respeitados, o filme em si carece de um autêntico veio espiritual, deixando a impressão de que Alejandro G. Iñárritu busca em outros diretores autorais uma própria marca pessoal, mais parecendo que o mexicano é daqueles que acreditam (erroneamente) que dirigir um filme é ser como um deus, intocável e irrepreensível. Todavia, “O Regresso” raramente peca em seus atributos técnicos e artísticos, ficando a cargo do seu espectador tirar uma mensagem a partir de tudo o que foi presenciado. Contrariando o pensamento de Rousseau, é a natureza que torna o homem (civilizado) um bom selvagem.

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