
Em “Vitória“, dirigido por Andrucha Waddington, a promessa de um drama social tenso e politicamente urgente parece estar nas mãos certas: Fernanda Montenegro, com mais de 90 anos, encarna Dona Nina, uma mulher que, diante da violência desenfreada em uma comunidade do Rio de Janeiro e da inoperância da polícia, decide documentar crimes da janela de seu apartamento. A premissa é dourada, carregada de potencial para discutir solidão, resistência civil e a complexidade do medo. No entanto, o filme tropeça em suas próprias ambições, entregando uma experiência desigual, onde a genialidade da protagonista brilha, mas o conjunto falha em sustentar seu peso.
Fernanda Montenegro: A Alma que Sustenta (Quase) Tudo

Dona Nina é um personagem denso, construído com camadas sutis pela maestria de Montenegro. Sua solidão claustrofóbica, traduzida em planos prolongados do apartamento vazio e na obsessão silenciosa por registrar crimes, é o coração do filme. A atriz consegue, com um olhar ou um gesto mínimo, transmitir décadas de história não dita: o amor pelo apartamento (último refúgio de uma vida que lhe resta), a revolta contida contra a violência e, paradoxalmente, uma teimosa displicência ao se colocar em risco. A cena em que ela descreve, com voz trêmula, pouco da sua história e cicatrizes, e a relação com o espaço que habita é um dos momentos mais poderosos, evidenciando como a personagem poderia carregar um filme inteiro se o roteiro a escutasse.
Aqui, a genialidade de Montenegro se choca com a fragilidade do texto. A “revolta iminente” que ela incute no espectador esbarra em diálogos e situações que beiram o clichê. Em vez de explorar sua complexidade, o roteiro a coloca em rota de colisão com vilões caricatos.
O Elenco de Apoio: Caricaturas em um Mundo que Pede Humanidade

Se Dona Nina é multifacetada, os personagens ao seu redor parecem saídos de um roteiro preguiçoso. O Major Messias (Thelmo Fernandes) é um antagonista tão exagerado que chega a destoar do tom do filme. Sua atuação com uma entonação e gestualidade que lembram vilões de comédia pastelão, sem a ironia que justificasse a escolha. Já Bibiana (Linn da Quebrada) e o jornalista Flávio (Alan Rocha) são tão pouco desenvolvidos que suas motivações parecem esboços: ela, uma mulher trans, que esbanja carisma tem sua personalidade roubada pelas falas genéricas do texto; ele, um repórter oportunista que surge apenas para servir de contraponto à protagonista, com uma relação de cumplicidade extremamente forçada, enquanto Montenegro entrega tudo de sí, o elenco de apoio segue sem rumo e motivação.
Não se trata apenas de falha dos atores — embora alguns demonstrem claro desinteresse —, mas de uma direção que não soube extrair deles nuances. Waddington prioriza o ritmo soturno e claustrofóbico, sempre dobrando a aposta do suspense, em vez de permitir que os apoios respirem. O resultado são interações mecânicas, sem química ou subtexto, que reduzem o conflito a uma batalha entre “boa velhinha” e “bandidos grotescos”.
Clímax Morno e uma Direção que Dilui o Impacto

O maior pecado de “Vitória” é não sustentar o peso emocional que constrói ao longo da narrativa. Quando tudo parece prestes a explodir — com Nina finalmente testemunhando o crime que justifica sua revolta —, Waddington hesita e opta pelo suspense estático. A cena, que deveria ser o ápice da tensão, perde força com uma quebra abrupta do clímax, diluindo seu impacto.
O terceiro ato se arrasta em uma sequência de falsas promessas, repetindo a sensação de que “algo vai acontecer”… mas nunca acontece. No fim, os conflitos são resolvidos de forma conveniente, com uma operação policial quase sem tiros e sem real peso emocional, deixando a trama sem o desfecho que merecia.
Vale a Pena?

“Vitória” é, acima de tudo, um testemunho do poder de Fernanda Montenegro. Cada momento em que ela está na tela — seja observando o caos pela janela, seja relembrando o passado com uma mistura de dor e ironia — é cinema puro. Mas o filme falha em tentar ser maior que sua protagonista. Enquanto Dona Nina luta contra a criminalidade, o roteiro parece sucumbir à própria preguiça criativa, entregando um drama que poderia ser incisivo, mas se contenta em ser apenas competente.
Assistir a “Vitória” é como encontrar uma joia rara envolta em papel jornal: você a celebra, mas não pode evitar a frustração de saber que, com mais cuidado, ela brilharia muito mais.
Nota do CineOrna: ⭐⭐⭐ (3/5)
Para quem? Fãs de dramas urbanos e da lendária Fernanda Montenegro.