Assistir um cineasta que admiramos em sua melhor forma é daqueles presentes de aquecer o coração. Em “Mães Paralelas”, Pedro Almodóvar nos entrega não só a estética e as temáticas provocadoras que amamos, como também uma trama cheia de emoção e intensidade. Seu longa mais recente, já disponível na Netflix, se foca nos traumas e heranças que carregamos não apenas de nossas famílias, mas do lugar de onde viemos e das histórias que nos precederam.
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Envolto por características do melodrama como é típico do diretor, o enredo reúne Janis (Penélope Cruz) e Ana (Milena Smit) no dia do nascimento de suas filhas. Duas mães solteiras e sozinhas, elas compartilham um quarto e iniciam ali uma amizade inesperada. Enquanto Janis está feliz pela oportunidade de ser mãe, Ana não se sente pronta e não tem o apoio, por vez, de sua mãe. As estradas tão diferentes que as levaram até aquele momento tendem, a partir de então, a se tornar cada vez mais intrínsecas.
Dentre os símbolos comuns às obras de Almodóvar, aqui temos novamente a aura de suspense e mistério, que muitas vezes levam seus filmes juntamente com frações de bom humor recorrentes. No decorrer da história, sentimos uma certa expectativa por pontos de virada cheios de vingança e surpresas que podem estar por vir. Afinal, um toque dessa possibilidade é deixado pelo diretor em suas escolhas de fotografia e de recorte de cenas. Para o público acostumado com seu cinema, sabemos como esses desenvolvimentos podem acontecer de maneira chocante, como já vimos em longas como “Fale com Ela” ou “A Pele que Habito”. Dessa vez, porém, o que se segue é um aprofundamento cada vez maior do drama que envolve suas personagens, em especial Janis.
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A intensidade do roteiro está nas dores e feridas individuais e coletivas que escolheu expor. A linha narrativa das mães paralelas caminha lado a lado com a busca de Janis para reivindicar uma parte importante da história de sua família. Ela tem como missão pessoal encontrar desaparecidos da vila onde sua família morou e sofreu nos anos do regime de Franco. Essa relação constante com seu passado é o que liga toda a trama às questões sobre o quanto de nossa História, ou de nós, está em quem veio antes. De quem viemos e quem deixamos. Dessa forma, Almodóvar traz também o passado coletivo e a importância de resgatar essas memórias para continuar o caminho deixado pelas gerações anteriores.
Ainda que não antes assim tão explícito, essa herança social é algo que o diretor carrega desde o início de sua carreira. Seus filmes sempre seguiram e referenciaram um movimento contra cultura chamado Movida Madreleña, que nasceu após a morte de Franco a partir principalmente das obras artísticas e expressões da nova geração espanhola. Aí está a essência de Almodóvar, com suas cores vibrantes, suas escolhas transgressoras e seu ímpeto contestador. Em seus personagens talvez polêmicos e sempre provocativos, deu luz a protagonistas e mensagem que quis destacar para o mundo.
Agora, com um portfólio cinematográfico tão sólido e com tantas estórias já contadas, Almodóvar recorda uma premissa que apresentou para Penélope Cruz, uma de suas atrizes de maior parceria – se não a maior – 18 anos atrás. Mais comedido em alguns pontos, mas ainda visceral, ele utiliza muitos elementos reconhecidos de seus filmes com precisão certeira em “Mães Paralelas”. É o caso dos saltos temporais, que se encaixam perfeitamente no ritmo do filme. Enquanto algumas vezes este recurso nos tira por um momento da história ou abre brecha para furos narrativos, aqui é recurso orgânico e até mesmo necessário.
Como este, cada escolha de Pedro Almodóvar parece fruto de uma longa carreira e um momento mais sereno para contar suas histórias. O compasso mais calmo não tira características determinantes de suas obras como a excentricidade, a complexidade e a originalidade. Para “Mães Paralelas”, ele dispensa o humor e o melodrama é sutil. Tudo em tela e no roteiro favorece o destaque para a vivência dessas mães e no que significa a maternidade e a ancestralidade para elas – ou para ele. Assim, ganhamos como espectador ao presenciar uma bela história escrita por ele, em cenografias e fotografias belíssimas e um drama que envolve e universaliza a conversa que propõe.