Para início de conversa, “Batman vs Superman: A Origem da Justiça” não é mais um “filme de super-herói” do qual estamos acostumados a ver anualmente, com suas histórias cada vez menos autossustentáveis em prol dos lançamentos futuros de um certo estúdio. Atrelando consequências aos incidentes de “O Homem de Aço“, o herói da batalha de Metrópolis e seu rastro de destruição são postos num dilema: o Filho de Krypton é uma ameaça que precisa ser combatida ou um anjo da guarda em tempos cada vez mais incrédulos? No impasse do Congresso Americano na obtenção de um consenso, há aqueles que preferem agir por conta própria, com atitudes planejadas para um bem ou um mal necessário. Dialogando com questões contemporâneas em suas entrelinhas, este segundo passo do Universo Estendido da DC Comics é uma prova do quanto heróis podem amadurecer, ainda que sujeitos a falhas.
Dezoito meses após o caos da invasão alienígena, a cidade do Planeta Diário se reergue graças aos investimentos da LexCorp do jovem multimilionário Lex Luthor (Jesse Eisenberg), enquanto o jornal chefiado por Perry White (Laurence Fishburne) se mostra em crise de pautas considerando o desinteresse do público em comprar exemplares impressos. Na trilha de mercenários terroristas está a sempre investigativa Lois Lane (Amy Adams) e Clark Kent/Superman (Henry Cavill) insiste em cobrir a aterrorizante “justiça feita pelas próprias mãos” do Batman (Ben Affleck) em Gotham. Tendo presenciado com os próprios olhos o confronto entre Superman e Zod (Michael Shannon) nas ruas de Metrópolis, Bruce Wayne, com as marcas e o peso de vinte anos de suas atividades noturnas, mais se sente inclinado a ser aquele que não medirá esforços ao vestir a capa e capuz do morcego quando chegar a hora de enfrentar o alienígena.
Tendo escrito dois filmes da trilogia “O Cavaleiro das Trevas” dirigidos por Christopher Nolan e também “O Homem de Aço”, o roteirista David S. Goyer retorna a este universo em parceria com Chris Terrio (“Argo”), uma contribuição notável que influencia tanto a qualidade das falas como as duas grandes tramas que pretende apresentar. Fornecendo o cenário perfeito para a entrada triunfal do “novo” e mais estimado personagem do filme, o Batman de Ben Affleck alcança um patamar que seus predecessores talvez não almejassem, se não fosse pelo tamanho apreço que o ator tem pelo personagem. Dando ao herói a camada que lhe faltava, o instinto de detetive tão marcado nos quadrinhos até hoje e nos elogiados games da série Arkham (que influenciam também o modo de luta ágil e brutal), o novo Bruce Wayne é cético quanto a humanidade (enxergando os criminosos como erva daninhas) e esbanja charme e inteligência como bem entende, sendo divertido notar que ele utiliza tais qualidades a seu favor sem precisar vestir o traje. Mas Bruce Wayne não seria o Batman por completo se não recebesse a ajuda de seu fiel mordomo Alfred Pennyworth, e a adição de Jeremy Irons confere um contrapeso afiado com um bom toque de humor, longe de ser a relação desgastante que Christian Bale e Michael Caine tiveram que levar na trilogia anterior.
Detonado pela velha guarda da crítica, não é mentira que “Batman vs Superman” contenha seus deslizes. Onde previamente se mostrava tão eficaz no controle dos efeitos visuais, por vezes Zack Snyder se extrapola e coloca cenários e personagens mal compostos digitalmente, além de recorrer em algumas gradações de cores que mais borram a fotografia de Larry Fong (ainda que seja interessante ver Gotham mergulhada numa palidez cinzenta), prejudicada também por um 3D convertido que não acrescenta muita coisa, aliás, compromete a nitidez de muitos planos. Cabe às várias sequências rodadas com câmeras do IMAX (como o prólogo melancólico, o pesadelo do Batman a la “Mad Max” e o desfecho mais que épico), o grande destaque do longa com sua definição inigualável, aumentando cada impacto. Uma pena que Hans Zimmer e Junkie XL não tiveram a oportunidade de criar uma trilha mais inspirada como o que foi feito em “O Homem de Aço“, com temas marcantes e menos escandalosos, embora haja um alucinante solo de guitarra que deixa a batalha com um toque selvagem e triunfante, deixando a curiosidade ainda maior para a Mulher Maravilha (Gal Gadot, roubando a cena mesmo com pouco a apresentar neste corte) e seu futuro filme solo.
Enquanto os super-heróis da Marvel brigam apenas por questões de ego cada vez mais vexaminosas, chega a ser chocante perceber o motivo do duelo mortal pelo qual Superman e Batman são forçados a agir, tudo orquestrado por uma mente psicótica e humana cuja razão de tanto ódio parece ser explicada apenas pela insanidade. O tão esperado embate é, então, uma luta poderosa (bem coreografada e filmada), mas desesperado para evitar consequências irreversíveis. A partir do momento em que Kal-El conhece o medo pelas mãos de Wayne, toda a contenção de suas super-habilidades é deixada de lado e aquele homem diante dele, um mortal que sempre usou o medo a seu favor, passa a temer pela própria vida em um instante específico. Uma dupla cólera que só mesmo as lembranças do passado são capazes de remediar.
É nesta quase infinidade de memórias que conhecemos mais as perspectivas e analogias desses dois icônicos personagens, não importando suas origens e crenças. A verdade é que eles (e nós) partilhamos de um super-poder inigualável, a força da imaginação que é capaz de construir e desmontar sonhos, revelando nossos maiores medos e anseios que surgem imprevisíveis, assim como são apresentados na montagem do filme. É mais do que óbvio que Snyder não está interessado em ser um novo Fellini e na representação onírica dos sonhos tão presente na filmografia deste, embora flertem demais com fetichismos, mas o diretor dos “visionários” “300″ e “Watchmen” ao menos compreende a magnitude e liberdade que os sonhos podem trazer.
Numa primeira vista, para quem se abraça a pré-conceitos, “Batman vs Superman: A Origem da Justiça” pode parecer insensato, longo, confuso, sob a pesada sombra da trilogia de Christopher Nolan servindo como parâmetro para ter o mesmo potencial simbólico. Entre as suas ressalvas, resistem suas várias qualidades, um trabalho formidável e maduro que transpõe das páginas dos quadrinhos da DC para as telas um autêntico encadernado visual, afinal, filmes como esse sempre deveriam se prezar pela ação (e aí espero que George Miller venha a se interessar em fazer um próximo “Liga da Justiça“).
Todavia, quando um ato terrorista acontece na mesma semana da estreia do filme, que também lida com questões semelhantes, igualmente televisionadas, passamos a imaginar como seria um mundo com heróis que pudessem prevenir tais atrocidades. Uma bela mentira, conveniente, esperançosa, mas que viria a calhar.
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