Enquanto acompanhava a densidade cênica de McQueen num desenvolvimento minucioso em relação à narrativa e a estética de “12 Anos de Escravidão” só conseguia pensar em Strange Fruit e No Church In The Wild, duas canções moralmente políticas que de forma (in)direta acabam servindo como contraposição dos equívocos e acertos do filme de McQueen. Strange Fruit, canção poema de Abel Meeropol, que ficou conhecida na voz de Billie Holiday, sobre frutos estranhos (negros) presos a uma árvore com sangue em suas folhas é talvez a transposição anarquista mais assombrosa da escravidão e do racismo nos Estados Unidos em forma de linguagem. Particularmente, a versão que melhor remete ao filme em questão é a na voz de Nina Simone, cujos ecos e agressividade configurados à sua melancólica interpretação nos áureos anos 60 dá praticamente todo o tom e a atmosfera de terror em “12 Anos de Escravidão” -sendo também o ponto mais alto do filme.
Steve McQueen possui notável habilidade para compactuar diversificados sentimentos em imagens a criar laços intensos com o espectador – já comprovado em “Hunger” e posteriormente no polêmico “Shame“. De certa forma, “12 Anos de Escravidão” é uma continuação do argumento de “Shame“, na premissa que envolve os sentimentos morais do homem em relação a sua (falsa) liberdade e a reluta do instinto humano, mas sem a sensibilidade ou coesão do anterior. Solomon Northup é um homem livre cuja (falsa) liberdade lhe é roubada por 12 anos de escravidão, como o próprio título já reflete. Ao ser colocado em confronto com sua condição racial e de homem nobre de família, Solomon absorve a necessidade de sobrevivência e aos poucos se despe da (falsa) idealização de homem livre. De maneira a perpetuar o drama e a injustiça a qual Solomon se encontrará, o texto de John Ridley em parceria com a visão estética vigorosa de Steve McQueen parte da ideia que tais conflitos vivenciados por Solomon –e brilhantemente interpretados na personificação anêmica de Chiwetel Ejiofor – são justificáveis, uma vez que o mesmo era negro e livre. Nesse ponto pertinente da trama cabe a No Church In The Wild, parceria de Kanye West e Jay Z com Frank Ocean, interferir como argumento contrário à maneira como McQueen configura o drama de Solomon (ou Pratt), que não se faz num desenvolvimento natural, como o filme te faz crer nas inúmeras sequências de (auto)reflexão e desconforto no espectador, pois mesmo que ao fim da sessão Solomon seja transformado num mito assombroso da escravidão, em nenhum momento os efeitos estéticos hipnotizantes de McQueen revelaram os valores de sua condição racial e, sobretudo, de sua condição de ser humano. Não que McQueen esteja sendo sádico, ou algo parecido, mas parece que 12 Anos faz muita questão da cor de Solomon no desenvolvimento de sua tese sobre individualismo – que é também o ponto de partida de No Church In The Wild – e ao legitimar tal problemática colocando a moral e a liberdade numa balança que parece ter medo de pender para um lado ou para o outro, qualquer valor sentimental que a produção parecia crer ao se projetar como um filme de terror moral e não como um melodrama histórico, leva a crer que McQueen tenha medo do que seu próprio cinema possa refletir. E não existe algo mais desapontador que um diretor domesticando suas próprias ideologias, não é?
Não necessariamente decepcionante, já que estamos falando de um filme de terror por excelência, McQueen consegue driblar bem as falhas mais óbvias – a trilha sonora do defasado Hanz Zimmer sendo talvez o problema mais gritante -, mas “12 Anos de Escravidão” parece ser um filme bem menos impactante após a sessão, principalmente por dar tanta importância à concepção de Solomon como homem livre e nobre (o que ele obviamente não era), e por mais sensato e violento que McQueen queira soar, seu senso narrativo dramático interfere aqui quase dicotomicamente a favor do empobrecimento das vísceras de “12 Anos de Escravidão“. Não mais que um filme belamente dirigido e atuado (Lupita Nyong’o e Michael Fassbender contracenam as melhores cenas do filme), a idealização agressiva que acomete “12 Anos de Escravidão” só se valida na imaginação da voz amarga e visceral de Nina Simone se fazendo corpo onipresente nos açoites à Solomon e na desconfiguração de sua dignidade humana – em imagens tão difíceis de digerir quanto refletir.